A companhia de teatro Amarelo Silvestre, de Canas de Senhorim, faz hoje a antestreia nos próximos dias o Diário de uma República II, uma peça que conjuga o som, texto e sonografia com a fotografia, para expor a realidade do setor laboral no país.
“O trabalho não nos tira da pobreza, então porque continuamos a trabalhar?”. A questão puramente retórica é lançada por Fernando Giestas, diretor artístico da Amarelo Silvestre, que apresenta hoje o Diário de uma República II, uma peça que explorará a temática do trabalho no território português. “Há toda uma panóplia de problemáticas que nós sentimos que era interessante trazer para a reflexão teatral”, explica.
O Diário de uma República começou em 2020, e vai estender-se até 2030, num projeto que nasce do trabalho dos fotógrafos Augusto Brázio e Nelson d’Aires. “O Augusto tem uma longa experiência no foto-jornalismo e ambos são fotógrafos com um trabalho muito sólido em Portugal”, desde a fotografia documental e de território à artística.
A primeira edição do Diário de uma República dedicou-se à justiça, mas agora faz-se segunda abordagem, dedicada ao trabalho. Hoje há uma sessão extra, às 17h00, no Auditório dos Bombeiros de Canas de Senhorim. A peça explora fotografias captadas desde o ano passado, em Nelas, Viana do Castelo, Lisboa, Ponte de Lima, Portalegre, Vila do Conde, Ílhavo e Leiria e Loulé, que recebe a estreia do espetáculo no Teatro Loulense a 10 de junho.
As fotografias serão projetadas em telas e, paralelamente, recorrer-se-á ao texto, coreografia e sonografia para trabalhar a temática do trabalho. “Vamos olhar para as fotografias e sentir nelas aquilo que já têm de matéria teatral, nomeadamente a questão coreográfica, os gestos, as linhas e perspetivas. Também a questão dos figurinos, que as fotografias já demonstram”, explica o diretor artístico. “O que podem dizer-nos estas fotografias e o que podemos dizer delas? É uma matéria muito rica para este nosso propósito”, reconhece.
“Ter pouco por escolha é uma coisa”, mas ser pobre devido ao passado e contexto familiar “faz toda a diferença”, alerta Fernando Giestas. “É uma beleza muitas vezes perigosa, pois pode haver a poetização da pobreza. É muito bonito o gesto de ver pessoas a estender a roupa, cavar a terra e manobrar uma máquina, pois se há coisa que gosto é de pessoas, da existência humana. Mas é uma armadilha, as pessoas entram nessa romantização da simplicidade e de quem tem pouco para viver. As pessoas vivem em más condições e batalham por ter uma vida digna, mas não saem daí porque não podem, é o tal elevador social”. Fique claro, Fernando Giestas admite não apresentar soluções. “De repente, há uma nova forma de olhar para o trabalho e para a precariedade, mas o intuito é sempre colocar mais questões do que dar respostas. Queremos partilhar o nosso questionamento com as pessoas”, justifica.
Teme-se aquele que nada tem a perder
Estamos em 2009 e Fernando Giestas co-funda a Amarelo Silvestre com Rafaela Santos, que mantêm a direção-artística da companhia até hoje. Na altura, Rafaela mudava-se de Lisboa para a região de Viseu. Profissionalmente, Fernando estava numa transição entre o jornalismo e o teatro.
“Era um momento de conturbação social e económica no país, um contexto difícil, mas por uma questão de sobrevivência e de querer batalhar por um sonho, decidimos criar o nosso próprio emprego”. A dimensão deste risco foi pouco equacionada. “As dificuldades existiam, mas às vezes temos de fechar os olhos, correr e esperar não bater em nenhuma parede”, justifica.
A paixão pela arte teatral nasce, apropriadamente, no Teatro Viriato, onde Rafaela Santos dava aulas. “Mantive o registo da escrita, que serviu de elo de ligação entre as áreas do jornalismo e do teatro”, explica. No fundo, ambos tinham pouco a perder “e muito a ganhar”, resume.
As dificuldades financeiras de quem vive da arte
As dificuldades associadas à concretização do projeto são as habituais e esperadas. “A compensação financeira ainda é um problema. Nós vivemos disto e precisa-se de dignificar o trabalho que fazemos”, desabafa. “Também é preciso ser acompanhado de investimento financeiro e de recursos humanos e técnicos”, explica, ao que companhia Amarelo Silvestre se candidatou aos aos apoios da Direção-Geral das Artes. “Tivemos esse reconhecimento, pelo que teremos apoio bienal durante 4 anos, entre 2023 e 2026. Ainda assim, a Câmara Municipal de Nelas “tem sido uma entidade muito importante neste percurso”, concede.